segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Os pingos dos is

 
Essas demonstrações de afeto de estranhos me afetam um bocado.

Que nem naquele dia em que fui aos correios. Fui lá enviar uns documentos pra me inscrever em alguma coisa, nem lembro direito. Uma dessas coisas cheias de burocracias e firmas reconhecidas. Carregava na minha mão esquerda um envelope, amarelo queimado, chega pesado de documentos e com endereços escritos com minha dura letra de forma. Não consigo pensar em algo que represente melhor essa frieza do que a caneta Bic com que os escrevi. Daquelas de agência, com uma correntinha presa na ponta. Podia senti-la: “acabou? Agora me deixe em paz”.


Havia umas quatro pessoas na fila. A moça que estava logo à minha frente esperava, paciente. Na sua mão esquerda, levava um envelope branco não muito maior que uma foto normal, daquelas de quinze por dez centímetros, acho. Pela leveza, devia carregar uma carta, quem sabe um postal ou uma das tais fotos de quinze por dez.


O endereço estava escrito em inglês, primeiramente. Abaixo, em persa. Não que eu saiba diferenciar a língua persa da árabe, mas consegui ver que estava endereçada pra Teerã. Pesquisando depois na Internet, vi que no Irã falam persa, não árabe. Pois bem, voltando. Nossa, Teerã... daqui pra lá é chão.


Mas o que mais me chamou a atenção foram os pingos dos is. Não foi envelope, endereço, persa ou Teerã. Os pingos dos is. Que nem eram pingos, na verdade: eram corações. Vermelhos, destacando-se do azul do endereço. Feitos com um esmero que, tenho certeza, já aquecia o coração da pessoa que receberia aquilo.


Vez em quando, pergunto-me sobre o conteúdo da suposta carta, é verdade. Se uma carta de amor, de saudade, de amizade, de ansiedade ou disso tudo. Pergunto-me sobre quem iria receber, se é parente, paixão ou amigo ou amiga. Mas, de novo, os corações nos is, feitos com esmero. Não sei se eram só no endereço ou se dentro do envelope apareciam também. Não sei se já tinham um significado especial ou se eram uma surpresa. Se é que tinham algum propósito. De repente, era só um costume da moça, desenhar corações nos is.


Gosto de pensar que não. Que significavam algo especial. O quê, eu não sei. Algo só dessas duas pessoas. Que cruzaria continentes e faria um sorriso ser aberto antes mesmo da carta. Algo que molharia os olhos que os fitassem sem dizer nenhuma palavra. Que nem o rosto há muito não visto de quem a gente ama. Algo que diria “vê só? Eu não esqueci”.


Gosto de pensar que aquela moça na minha frente fez os tais corações nos is pensando na reação da outra pessoa, com o maior afeto do mundo. Tanto que aposto que a caneta vermelha que desenhou os corações ficou com uma alegria de dar inveja até na caneta Bic ranzinza da agência.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A lâmpada e a luminária


Hoje fez um ano que a lâmpada do meu quarto queimou
Não sei se por preguiça ou desleixo, não a tirei nos primeiros dias
Por poesia, não a tirei nos outros muitos

Acho que me acostumei com a luz tímida da luminária
Tenho uma simpatia por ela, que fica ali, no canto da mesa.
Ah, porque ela é quietinha e não tenta tomar conta de tudo
Que nem a outra.
Meus olhos agradecem.
Minhas ideias preferem a luminária também,
Dizem que se sentem mais confortáveis ou algo assim.

Hoje me deu uma coisa, não sei porque.
Senti meio que uma obrigação de trocar a tal da lâmpada.
Nunca liguei pra isso,
Mas hoje me deu uma coisa.
Até comprei uma lâmpada nova.

Peguei um banco, coloquei no centro do quarto,
Há quanto tempo, lâmpada.
Tirei-a pela primeira vez desde que queimara.
Mas aconteceu alguma coisa
Que parte do bocal veio junta, grudada na rosca.
Complicado.

Meus olhos sorriram.
Minhas ideias dançaram.
A gente gosta bem mais da luminária, mesmo.