Essas demonstrações de afeto de estranhos me afetam um bocado.
Que nem naquele dia em que fui aos correios. Fui lá enviar uns documentos pra me inscrever em alguma coisa, nem lembro direito. Uma dessas coisas cheias de burocracias e firmas reconhecidas. Carregava na minha mão esquerda um envelope, amarelo queimado, chega pesado de documentos e com endereços escritos com minha dura letra de forma. Não consigo pensar em algo que represente melhor essa frieza do que a caneta Bic com que os escrevi. Daquelas de agência, com uma correntinha presa na ponta. Podia senti-la: “acabou? Agora me deixe em paz”.
Havia umas quatro pessoas na fila. A moça que estava logo à minha frente esperava, paciente. Na sua mão esquerda, levava um envelope branco não muito maior que uma foto normal, daquelas de quinze por dez centímetros, acho. Pela leveza, devia carregar uma carta, quem sabe um postal ou uma das tais fotos de quinze por dez.
O endereço estava escrito em inglês, primeiramente. Abaixo, em persa. Não que eu saiba diferenciar a língua persa da árabe, mas consegui ver que estava endereçada pra Teerã. Pesquisando depois na Internet, vi que no Irã falam persa, não árabe. Pois bem, voltando. Nossa, Teerã... daqui pra lá é chão.
Mas o que mais me chamou a atenção foram os pingos dos is. Não foi envelope, endereço, persa ou Teerã. Os pingos dos is. Que nem eram pingos, na verdade: eram corações. Vermelhos, destacando-se do azul do endereço. Feitos com um esmero que, tenho certeza, já aquecia o coração da pessoa que receberia aquilo.
Vez em quando, pergunto-me sobre o conteúdo da suposta carta, é verdade. Se uma carta de amor, de saudade, de amizade, de ansiedade ou disso tudo. Pergunto-me sobre quem iria receber, se é parente, paixão ou amigo ou amiga. Mas, de novo, os corações nos is, feitos com esmero. Não sei se eram só no endereço ou se dentro do envelope apareciam também. Não sei se já tinham um significado especial ou se eram uma surpresa. Se é que tinham algum propósito. De repente, era só um costume da moça, desenhar corações nos is.
Gosto de pensar que não. Que significavam algo especial. O quê, eu não sei. Algo só dessas duas pessoas. Que cruzaria continentes e faria um sorriso ser aberto antes mesmo da carta. Algo que molharia os olhos que os fitassem sem dizer nenhuma palavra. Que nem o rosto há muito não visto de quem a gente ama. Algo que diria “vê só? Eu não esqueci”.
Gosto de pensar que aquela moça na minha frente fez os tais corações nos is pensando na reação da outra pessoa, com o maior afeto do mundo. Tanto que aposto que a caneta vermelha que desenhou os corações ficou com uma alegria de dar inveja até na caneta Bic ranzinza da agência.